Bolsonaro deu ‘informação dúbia’ sobre pandemia, diz ex-ministro Mandetta à CPI da Covid

O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta foi ouvido durante oito horas nesta terça-feira (4) pela CPI da Covid-19. Mandetta afirmou que o Brasil deveria ter demonstrado “unidade” e “fala única” sobre as medidas de combate à covid-19, como o isolamento social. No entanto, segundo o ex-ministro, o presidente da República, Jair Bolsonaro, contribuiu para que a sociedade recebesse “uma informação dúbia” sobre como lidar com a doença.

“O Ministério da Saúde foi publicamente confrontado, e isso dava uma informação dúbia à sociedade. O objetivo do Ministério da Saúde era dar uma informação, e o presidente dava outra informação. Em tempos de epidemia, você tem que ter a unidade. Tem que ter a fala única. Com esse vírus, o raciocínio não pode ser individual. Esse vírus ataca a sociedade como um todo. Ele ataca tudo”, afirmou.

Mandetta ficou à frente do Ministério da Saúde até o dia 16 de abril de 2020. No dia 28 de março, ele diz ter entregue uma “carta pessoal” a Jair Bolsonaro. No texto, ele “recomenda expressamente que a Presidência da República reveja o procedimento adotado” para evitar “colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população”.

De acordo com o ex-ministro, o presidente Jair Bolsonaro foi diretamente comunicado sobre a escalada da pandemia no Brasil. Antes de deixar a pasta, Mandetta apresentou a Jair Bolsonaro, conforme disse, uma estimativa de que o país poderia chegar a 180 mil mortos no final de 2020. A previsão acabou sendo superada, e o Brasil encerrou o ano passado com quase 195 mil óbitos confirmados.

“Todas as recomendações as fiz com base na ciência, na vida e na proteção. As fiz em público, em todas as minhas manifestações. As fiz nos conselhos de ministros. As fiz diretamente ao presidente e a todos os que tinham de alguma maneira que se manifestar sobre o assunto. Sempre as fiz. Ex-secretários de saúde e parlamentares falavam publicamente que essa doença não ia ter 2 mil mortos. Acho que, naquele momento, o presidente entendeu que aquelas outras previsões poderiam ser mais apropriadas”, disse ele.

Embora nunca tenha tido, segundo disse, “uma discussão áspera” com o presidente da República, Luiz Henrique Mandetta reconhece que entre os dois “havia um mal-estar”. Ele afirmou acreditar que Jair Bolsonaro recorria a “outras fontes” e a um “assessoramento paralelo” para buscar informações sobre a pandemia de coronavírus.

“Isso não é nenhuma novidade para ninguém. Havia por parte do presidente um outro olhar, um outra decisão, um outro caminho. Todas as vezes que a gente explicava, o presidente compreendia. Ele falava: ‘Ok, entendi’. Mas, passados dois ou três dias, ele voltava para aquela situação de quem não havia talvez compreendido, acreditado ou apostado naquela via. Era uma situação dúbia. Era muito constrangedor para um ministro da Saúde ficar explicando porque estávamos indo por um caminho se o presidente estava indo por outro”, afirmou.

CLOROQUINA E “FALSAS VERSÕES”

Questionado pelo relator da CPI da Pandemia, senador Renan Calheiros (MDB-AL), o ex-ministro da Saúde criticou o uso da cloroquina como um tratamento preventivo contra a covid-19. Embora o presidente Jair Bolsonaro defenda publicamente o uso da substância pela população, Mandetta lembrou que, no enfrentamento de outras doenças, a droga é utilizada em ambiente hospitalar. O ex-ministro disse ainda desconhecer por que o Laboratório do Exército tenha intensificado a produção dos comprimidos no ano passado.

“A cloroquina é uma droga que, para o uso indiscriminado e sem monitoramento, a margem de segurança é estreita. É um medicamento que tem uma série de reações adversas. A automedicação poderia ser muito, muito perigosa. A cloroquina é já produzida para malária e lúpus pela Fiocruz e já tínhamos suficiente. Não havia necessidade, e tínhamos um estoque muito bom para aquele momento”, assegurou.

Mandetta rebateu o que classificou como “falsas versões” sobre a atuação dele no Ministério da Saúde. Segundo uma dessas “cantilenas”, apenas pacientes com “sintomas mais severos” deveriam buscar atendimento hospitalar nos primeiros meses da pandemia.

“Isso não é verdade. Estávamos no mês de janeiro e fevereiro e não havia um caso registrado dentro do país. O que havia naquele momento era pessoas em sensação de insegurança e pânico. As pessoas procuravam hospitais em busca de fazer testes, mas em 99,9% dos casos eram outros vírus. Se houvesse um paciente lá positivo, ele iria contaminar na sala de espera. Tenho visto essa máxima ser repetida e tenho percebido que é mais uma guerra de narrativa”, garantiu.

Mandetta disse que, na gestão dele, o Ministério da Saúde equipou 15 mil leitos de UTI com respiradores e iniciou a negociação para a aquisição de 24 mil testes para a detecção do coronavírus. Ele defendeu a vacina como a única “porta de saída” para a pandemia.

“Nós tínhamos a perfeita convicção. Doença infecciosa a vírus a humanidade enfrenta com vacina desde a varíola, passando por pólio, difteria e todas elas. A porta de saída era vacina. Em maio, depois que saí dos Ministério da Saúde, os laboratórios começaram a realizar os testes de fase 2. Só ali eles começam a abordar os países com propostas de encomendas. Na minha época não oferecido. Mas eu rezava muito para que fosse. Teria ido atrás da vacina como atrás de um prato de comida”, afirmou.

Questionado pelo vice-presidente da CPI da Pandemia, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Luiz Henrique Mandetta disse que a atuação do então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, dificultou a aquisição de insumos para o enfrentamento da pandemia. O ex-ministro da Saúde disse que “conflitos” dos filhos do presidente Jair Bolsonaro com a China também geravam “mal-estar”.

“Eu tinha dificuldade com o ministro das Relações Exteriores. O filho do presidente que é deputado federal [Eduardo Bolsonaro] tinha rotas de colisão com a China através do Twitter. Um mal-estar. Fui um certo dia ao Palácio do Planalto, e eles estavam todos lá. Os três filhos do presidente [deputado Eduardo Bolsonaro, vereador Carlos Bolsonaro e senador Flávio Bolsonaro] estavam lá. Disse a eles que eu precisava conversar com o embaixador da China. Pedi uma reunião com ele. ‘Posso trazer aqui?’ ‘Não, aqui não’. Existia uma dificuldade de superar essas questões. Esses conflitos com a China dificultavam muito a boa vontade”, disse Mandetta.

Para Mandetta, o governo passou a contrapor saúde e economia, um grande erro, já que os países que colocaram a saúde em primeiro lugar tiveram melhores resultados econômicos. Para ele, isso talvez tenha acontecido por influência do próprio ministro da Economia, Paulo Guedes. Parte da equipe econômica e do governo, continuou, acreditava que a pandemia acabaria no final de 2020. Em resposta à senadora Leila Barros, que perguntou sobre o descompasso entre Saúde e Economia na pandemia, Mandetta voltou a afirmar que equipe econômica ignorava alertas e “não compreendia o tamanho” da crise.

“Eu disse a todos eles quando a pandemia ia crescer, quando ia ser o aumento, quando que ela ia estabilizar, quando ela ia cair, o intervalo para ter uma segunda onda, o número possível de mortes em 2020, o número possível de mortes até o final da pandemia. Todas essas informações eles tinham. Agora, por que pautaram de uma maneira diferente, eu realmente fico em dívida com a senhora”, afirmou Mandetta em resposta à Leila Barros.

Além disso, Mandetta acusou Guedes de ser “desonesto intelectualmente” por ter insinuado que ele não teria agido para a compra de vacinas.

desmonte da equipe

Mandetta disse ainda que, de início, o presidente da República, Jair Bolsonaro, não interferiu na composição de sua equipe no ministério. “O governo me deixou montar a melhor equipe técnica possível. Mas quando veio a necessidade de trabalho técnico eles não queriam mais”, disse o ex-ministro. Ele também voltou a criticar o governo por colocar militares à frente do Ministério da Saúde. Em uma guerra, disse, “seria impensável sermos comandados por um médico”.

Por sua vez, o líder do governo Bolsonaro no Senado, senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), afirmou que é praticamente impossível a CPI avaliar se determinada ação é ou não responsável por aumentar o número de mortos por covid-19. Fernando Bezerra Coelho avaliou que Mandetta teve liberdade para conduzir o Ministério da Saúde e quis saber porque Mandetta não valorizou a produção nacional de vacinas quando era ministro. O ex-ministro explicou que havia grande cooperação global em forma de consórcio para garantir imunizantes.

NÚMERO DE MORTES

A líder da bancada feminina no Senado, senadora Simone Tebet (MDB-MS), quis saber de Mandetta se o número total de mortos no Brasil poderia ser menor se o governo tivesse levado em conta os alertas científicos. Segundo Mandetta, o governo poderia ter evitado o colapso do sistema de saúde e amenizado o avanço da pandemia se tivesse promovido as medidas sanitárias.

“Teríamos feito muito melhor, senadora. Essa segunda onda é o á’, pice desse tipo de decisão tóxica e equivocada. Acredito que essa segunda onda seria menordisse Mandetta. Em resposta a Simone, Mandetta disse que o ministério havia preparado campanha publicitária contra covid-19, mas o governo Bolsonaro não queria comunicar medidas de precaução: preferia um tom “ufanista”.

TESTES VENCIDOS

O senador Izalci Lucas (PSDB-DF) quis saber por que o SUS não tem um sistema informatizado unificado. Mandetta disse que isso sempre foi um desafio, mas havia projeto nesse sentido antes da pandemia, interrompido após sua gestão.

O senador Jean Paul Prates (PT-RN) perguntou a opinião de Mandetta sobre a execução de medidas sanitárias pelo governo. Para o ex-ministro, o país permitiu a continuação de atividades de alta contaminação e só agiu depois do “leite derramado”.

Instado pelo presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), sobre gastos do governo em testes de coronavírus que logo teriam a validade vencida, Mandetta disse que vai entregar à CPI dados sobre compra de testes.

BULA DA CLOROQUINA

No início da tarde, em resposta ao relator da CPI da Pandemia, Renan Calheiros (MDB-AL), Mandetta falou sobre um suposto documento que tratava da bula do medicamento conhecido como cloroquina.

“Eu testemunhei várias vezes reunião de ministros em que o filho do presidente [Carlos Bolsonaro], que é vereador no Rio de Janeiro, estava sentado atrás tomando as notas da reunião. Eles tinham constantemente reuniões com esses grupos dentro da Presidência. Eu estive dentro do Palácio do Planalto quando fui informado, após uma reunião, que era para eu subir para o terceiro andar porque tinha lá uma reunião de vários ministros e médicos que iam propor esse negócio de cloroquina, que eu nunca havia conhecido. O presidente tinha um assessoramento paralelo. Nesse dia, havia sobre a mesa, por exemplo, um papel não timbrado de um decreto presidencial para que fosse sugerido, daquela reunião, que se mudasse a bula da cloroquina na Anvisa, colocando na bula a indicação de cloroquina para coronavírus. O próprio presidente da Anvisa, Barra Torres, que estava lá, que falou: “Isso não”. E o ministro Jorge Ramos falou: “Não, isso daqui não é nada da lavra daqui. Isso é uma sugestão”. Mas é uma sugestão de alguém. Alguém pensou e se deu ao trabalho de botar aquilo num formato de decreto. Eu imagino que ele construiu fora do Ministério da Saúde alguns aconselhamentos que o levaram para essas tomadas de decisões que ele as teve, mas eu não saberia nomear a cada uma delas”, disse Mandetta.

Fonte: Agência Senado