CPI da Cemig detecta espionagem de servidores contrários a assinatura de contratos sem licitação

O nome do titular da Diretoria de Regulação e Jurídica da Cemig, Eduardo Soares, voltou ao centro das atenções no mais recente depoimento colhido pelos deputados da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Criada para investigar possíveis irregularidades na atual gestão e o uso político da companhia energética, a CPI da Cemig interrogou a representante legal da empresa de investigações corporativas Kroll Associates Brasil, Fernanda Carneiro. O depoimento da testemunha deixa claro a presença frequente do diretor jurídico Eduardo Soares como interlocutor da Kroll dentro da companhia energética de Minas Gerais.

Homem de confiança do diretor-presidente da Cemig, Reynaldo Passanezi Filho, foi Eduardo Soares quem teria escolhido e cuidado pessoalmente da contratação da Kroll, sob a justificativa da suposta necessidade de apuração independente de denúncias de corrupção na estatal mineira. E, depois, teria ainda ajustado os objetivos e rumos da investigação, que podem ter sido extrapolados por motivações políticas.

Embora a representante legal da Kroll tenha negado insistentemente que o escopo da investigação tenha sido extrapolado, documentos obtidos pela CPI da Cemig apontam que entre os alvos da devassa conduzida pela empresa podem estar temas que comprometam administrações estaduais anteriores.

É o caso, por exemplo, dos escândalos conhecidos como Mensalão Tucano e Lista de Furnas, nos governos do PSDB, e o Programa Luz para Todos, criado nos governos petistas.

CERCO A FUNCIONÁRIOS

Segundo o apurado até o momento pela CPI, o atual presidente da companhia foi contratado por indicação da Exec, empresa de headhunter (seleção de executivos) que tem entre seus sócios filiados ao Partido Novo, o mesmo do governador Romeu Zema. O interlocutor do contrato com a Cemig foi o empresário Evandro Negrão de Lima, do diretório do partido.

“A investigação da Kroll, que diz ter expertise internacional, está buscando até mesmo as ligações partidárias dos investigados. Mas nós, na CPI, até agora só achamos irregularidades na Cemig ligadas a filiados do Partido Novo”, ironizou o relator, deputado Sávio Souza Cruz (MDB).

Interferência – E a interferência de Eduardo Soares nas ações da Kroll prosseguiria até hoje, já que a devassa conduzida pela empresa de investigações corporativas, conforme a depoente, ainda não foi concluída. Os agentes da Kroll responderiam apenas a uma comissão especial de investigação, formada dentro da Cemig e que definiria o que é relevante ou não para os trabalhos.

“O que é relevante o time de investigação reporta para a comissão de investigação”, atestou Fernanda Carneiro. Tal comissão, conforme revelou ainda a depoente, tem como um dos seus integrantes Eduardo Soares, entre outros executivos da Cemig, e apenas um de seus membros é classificado por ela como independente. Ao longo da reunião, presidida pelo deputado Zé Guilherme (PP), os deputados questionaram ainda o porquê de Eduardo Soares, que já prestou depoimento à CPI da Cemig, ter requerido e obtido na Justiça a proteção de seus dados contra a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico, conforme aprovado pela CPI da Cemig.

Em contrapartida, servidores da Cemig supostamente investigados pela Kroll, alguns do mesmo setor jurídico de Eduardo Soares, já colocaram suas informações pessoais à disposição da CPI.

Fernanda Carneiro contou em seu depoimento que, após contato telefônico de Eduardo Soares, no início de novembro, a primeira proposta de trabalho da Kroll foi enviada ao diretor jurídico em 13 de novembro do ano passado, sendo depois revista em 30 de novembro. Contudo, a depoente revelou que já no dia 23 de novembro a empresa tinha recebido “autorização expressa” para deflagrar a investigação.

Nesse intervalo entre a primeira e segunda propostas, conforme contou Fernanda Carneiro, teria sido de Eduardo Soares o pedido à Kroll para incluir entre os instrumentos de investigação a instalação de um “agente invisível” nos equipamentos utilizados pelos trabalhadores da Cemig. Essa espécie de programa espião permitiria o monitoramento dos funcionários da estatal e, indiretamente, seus familiares, em tempo real.

No plano de trabalho da Kroll, aprovado pela Cemig e revelado na imprensa, estaria prevista a coleta de dados de servidores da Cemig e de seus familiares até segundo grau relativos a, por exemplo, redes sociais, cargos públicos, filiação partidária, doações políticas, contratos com entidades públicas, pendências com a Receita federal e até mesmo dívidas.

Alvos – Os objetivos primários de coleta de informações da Kroll na Cemig foram, de acordo com a depoente, os chamados investigados e custodiantes, ambos citados em ofícios sobre denúncias de corrupção recebidas pelo Ministério Público (MP). Os primeiros seriam os suspeitos diretos de crimes de corrupção, enquanto os outros seriam aqueles que poderiam guardar alguma informação útil ao andamento das investigações, embora possam não ter violado a lei.

“Nenhum trabalhador do jurídico da Cemig constava nos documentos do MP como investigado ou custodiante, mas foram alvo da investigação. Por que Eduardo Soares não foi sequer considerado um custodiante?” questionou Beatriz Cerqueira (PT).

Devassa – Um dos primeiros alvos desse tipo de devassa foi Daniel Polignano Godoy, ex-titular da Gerência de Direito Administrativo da Cemig, setor responsável pela emissão de pareceres jurídicos prévios para viabilizar contratações sem licitação.

Já na noite de 3 para 4 de dezembro do ano passado, com o aval de Eduardo Soares, ele teve seu computador invadido e arquivos copiados pela Kroll.

Na época, a empresa não tinha ao menos um contrato firmado que garantisse a confidencialidade das informações obtidas, conforme informou à CPI da Cemig o ex-executivo espionado. Mas o agente da Kroll foi flagrado pelo sistema de vigilância eletrônica da estatal, gravação já em poder da comissão parlamentar

Servidores de carreira na mira de intimidação – Uma das linhas de investigação seguida pelos deputados é de que, na mira da espionagem, como forma de intimidação, estariam sobretudo funcionários antigos da Cemig que se opunham à flexibilização dos mecanismos de controle que impediriam a assinatura de contratos bilionários sem licitação.

Em seu depoimento, Daniel Polignano revelou que, por decisão da diretoria executiva e do Conselho de Administração da Cemig, os pareceres jurídicos justificando a “inexigibilidade de licitação” passaram a ser emitidos posteriormente à celebração de contratos.

O ex-gerente de Direito Administrativo foi demitido do cargo em fevereiro deste ano por Eduardo Soares, sob o argumento de “ter visões diferentes de como a Cemig deveria funcionar”.

“A Cemig, que é uma empresa pública, pagou para espionar agentes públicos. É um caso pior do que o Watergate”, definiu o vice-presidente da CPI, deputado Professor Cleiton (PSB), em alusão ao episódio de espionagem pela agência de inteligência dos Estados Unidos (CIA) de membros do Partido Democrata, a mando do então presidente republicano Richard Nixon, que teve que renunciar.

Triangulação – Os deputados também questionaram o envolvimento de uma empresa de advocacia, a Sampaio Ferraz Advogados, de São Paulo, na contratação informal da Kroll, a pedido da Cemig, pelo valor de R$ 3,4 milhões.

Essa triangulação, segundo a depoente, é de praxe nas chamadas investigações forenses, para garantir o sigilo. Fernanda Carneiro ainda destacou, respondendo a perguntas do deputado Zé Reis (Pode), que a Kroll lidera rankings internacionais do segmento e que segue princípios éticos e dentro da legislação dos países em que atua.

Conforme já apurado pela CPI da Cemig, o contrato formal entre as partes somente foi assinado em 23 de abril de 2021, por meio do instrumento da convalidação, que é a regularização de contratações depois dos serviços contratados já terem sido executados.

O expediente, apesar de legal, deveria ser utilizado somente em situações emergenciais, mas, na atual da gestão da Cemig, tornou-se comum e de proporções bilionárias.

Fonte: ALMG
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A representante da Kroll, Fernanda Carneiro, disse em depoimento à CPI que a empresa de investigação agiu dentro de princípios éticos e de acordo com a lei em vigor (Foto:Daniel Protzner/ALMG)