Se é verdade que pandemias como a gripe espanhola não deixaram registros no Brasil dos bastidores políticos de governos para o seu enfrentamento, o mesmo não se poderá dizer em relação à COVID-19, o novo ponto de inflexão do século 21, a maior emergência sanitária enfrentada pela humanidade nos últimos 100 anos. Não faltarão detalhes a quem desejar pesquisar no futuro sobre aquilo que foi feito.
Tampouco faltará assombro face àquilo em que se decidiu por nada fazer, ainda que o custo da omissão fosse colocar em risco dezenas de milhares de vidas. Quem abre essa espécie de diário das mortes anunciadas, – e os embates ideológicos, em tempos de COVID-19 no coração do governo de Jair Bolsonaro – é o próprio Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, demitido em 16 de abril por insistir em adotar as recomendações internacionais indicadas pela comunidade científica para conter a feroz escalada da disseminação do vírus.
Um paciente chamado Brasil é o título do livro, que será lançado nesta sexta (25/09) pela Objetiva. Nele Mandetta narra 90 dias da tormenta, no período compreendido entre 24 de janeiro, quando acompanhava o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça – poucos dias antes de a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitir o alerta de emergência de saúde pública de interesse internacional – até a data em que, pela sua conta no Twitter, autorizou a publicação da mensagem que confirmava o que todos esperavam: a demissão após a breve reunião com o presidente Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto.
Neste livro-testemunho, Mandetta revela o seu espanto diante das atitudes de Bolsonaro: das delirantes teorias conspiratórias que o presidente nutre para explicar a pandemia, ao negacionismo da doença e soluções “mágicas” para a cura. Segundo Mandetta, Bolsonaro não apenas minimizou publicamente a gravidade da COVID-19 diversas vezes, como também nunca se interessou nem pelas projeções de sua disseminação, nem que o governo difundisse as medidas de proteção à população e, em particular, aos grupos de risco. Tampouco teve empatia com as famílias enlutadas.
“Para Bolsonaro a solução sempre foi simples: o projeto dele para o combate à pandemia é dizer que o governo tem o remédio e quem tomar o remédio vai ficar bem. Só vai morrer quem já ia morrer de qualquer maneira”, escreve Mandetta.
DESINTERESSE
O livro também revela a história de um ministro da Economia que, nos primeiros meses da pandemia, esteve alheio e desinteressado, lento para compreender a relação entre a emergência sanitária e a sua própria pasta. Mandetta relata diversos confrontos que teve com Paulo Guedes.
Um deles ocorreu em reunião ministerial, quando defendia o adiamento da autorização para o reajuste de medicamentos. Guedes que não conhecia bem o assunto e se indignou ao saber que os medicamentos são tabelados, passou a interpelar Mandetta. Os gritos dos dois lados foram suspensos por um tapa na mesa do vice-presidente Hamilton Mourão.
Foram diversos os embates surdos dentro do governo dirigidos contra o Ministério da Saúde, depois que este entrou em rota de colisão com o negacionismo presidencial: fosse pelo chamado “gabinete do ódio”; fosse pelos apoiadores que disputam entre si o título de “o mais ideológico”.
Entre as traições reveladas, a do ex-aliado Onyx Lorenzoni recebe um capítulo especial. Ao comentar a divulgação do diálogo entre Onyx e Omar Terra, que tramavam a sua queda, Mandetta aponta para um comportamento que considerou característico de Onyx: no auge do lavajatismo, em conluio com o grupo de Curitiba – que agora se tornou inimigo do governo Bolsonaro – o então deputado chegou a gravar uma reunião entre colegas do DEM, quando estes discutiam as medidas de combate à corrupção propostas pelos procuradores de Curitiba. Pela traição, tornou-se um pária entre os seus pares por um bom tempo, até que a eleição Bolsonaro restaurasse o seu trânsito entre os colegas de bancada.
Fonte: Estado de Minas