Choque, pau de arara e palmatória. O relato de Dilma sobre a tortura ironizada por Bolsonaro

Compartilhe essa reportagem:

“Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador ‘experiente’, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina.” A declaração foi dada pela ex-presidente Dilma Rousseff no mesmo depoimento em que relatou ter sofrido golpes na mandíbula e ter perdido um dente ao ser torturada em Juiz de Fora (MG), em 1972, durante a ditadura militar. Esse foi o episódio posto em dúvida nessa segunda-feira pelo presidente Jair Bolsonaro em conversa com apoiadores em Brasília. “Dizem que a Dilma foi torturada e fraturaram a mandíbula dela. Traz o raio-X para a gente ver o calo ósseo. Olha que eu não sou médico, mas até hoje estou aguardando o raio-X”, disse o presidente, entre gargalhadas.

Dilma durante auditoria militar no Rio de Janeiro, em 1970 (Foto: Comissão Nacional da Verdade)

O relato foi feito pela ex-presidente em 2001, quando ainda era secretária de Minas e Energia do Rio Grande do Sul e filiada ao PDT, ao Conselho Estadual de Direitos Humanos (Conedh) de Minas Gerais. Trechos do depoimento foram publicados em reportagem especial dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas em 2012, quando Dilma estava no meio de seu primeiro mandato de presidente.

Os detalhes da tortura sofrida em Minas, seu estado natal, eram desconhecidos do público até então. Ela já havia falado, em entrevistas e livros, sobre as agressões que sofreu em presídios de São Paulo e do Rio de Janeiro, em 1970. Dilma contou que era submetida a pau de arara, palmatórias, socos e choques.

“Minha arcada girou para o lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu. […] Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz [capitão Alberto Albernaz, do DOI-Codi de São Paulo] completou o serviço com um soco, arrancando o dente”, disse Dilma ao Conedh-MG, conforme a reportagem de Sandra Kiefer.

No mesmo depoimento ao conselho, ela contou que os policiais queriam informações sobre outro colega de luta armada, Ângelo Pezzuti.

“Eu comecei a ser procurada em Minas nos dias seguintes à prisão de Ângelo Pezzuti. Eu morava no Edifício Solar, com meu marido, Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, e numa noite, no fim de dezembro de 1968, o apartamento foi cercado e conseguimos fugir, na madrugada. O porteiro disse aos policiais do Dops de Minas que não estávamos em casa. Fugimos pela garagem que dá para a rua do fundo, a Rua Goiás.”

A ex-presidente relatou como foram os primeiros dias de sua passagem pela prisão em São Paulo, onde foi torturada, segundo ela, por 22 dias seguidos.

“Fui interrogada dentro da Operação Bandeirantes (Oban) por policiais mineiros que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber meus contatos com Ângelo Pezzuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga. Eu não tinha a menor ideia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 69 e isso era no início de 70. Desconhecia as tentativas de fuga de Pezzuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira. Talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata.”

Dilma contou que sofreu sessões de tortura com choque. “Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque”, explicou. “Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador ‘experiente’, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. Em São Paulo usaram pouco esse ‘método’. No fim, quando estava para ir embora, começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de dia e de noite. Emagreci muito, pois não me alimentava direito.”

A petista disse que sofreu hemorragia algumas vezes enquanto era torturada. “Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (…) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em Minas, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas.”

Ela admitiu que temia morrer na prisão de tanto apanhar. “O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente pelo resto da vida.”

“Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças. Eles interrogavam assim: ‘Me dá o contato da organização com a polícia?’ Eles queriam o concreto. ‘Você fica aqui pensando, daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura.’ A pior coisa é esperar por tortura”, disse no depoimento ao Conedh-MG.

A ex-presidente declarou, ainda em 2001, que nunca mais voltou a ser a mesma pessoa em razão das torturas. “Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato de sermos mais novos; agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é jovem, fisicamente, a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos o efeito é mais profundo, no entanto, é mais fácil aguentar no imediato”, afirmou. “As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim”, acrescentou.

Dilma foi presa em São Paulo no dia 16 de janeiro de 1970. Ela era responsável, junto com outros dois militantes, por guardar o arsenal da VAR-Palmares na capital paulista. Condenada em primeira instância a seis anos e um mês de prisão, e teve os direitos políticos cassados por dez anos. Depois, conseguiu redução da pena junto ao Superior Tribunal Militar (STM) e deixou a prisão no final de 1972.

De acordo com relato feito pelo Correio e pelo Estado de Minas, em 2012, com base nos documentos a que tiveram acesso em Minas, Dilma foi torturada em Juiz de Fora após a interceptação feita pela polícia de bilhetes endereçados à então militante de autoria de Pezzuti, uma das lideranças da organização à qual ele pertencia em Belo Horizonte, preso à época na capital mineira. A suspeita era de que ela estava tentando ajudá-lo a fugir. Os bilhetes, no entanto, foram interceptados antes de chegar até as mãos dela.

BILHETE

Em depoimento ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho, autor de um livro sobre mulheres torturadas na ditadura, Dilma disse que a pior coisa da tortura é esperar para apanhar. “A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro…”, declarou em entrevista publicada pela Folha de S.Paulo em 2005.

Dilma divulgou uma nota em suas redes sociais em que afirma que Bolsonaro tem uma “visão de mundo fascista” que pode ser evidenciada “na celebração da violência”. Ela continua: “É triste, mas o ocupante do Palácio do Planalto se comporta como um fascista. E, no poder, tem agido exatamente como um fascista. Ele revela, com a torpeza do deboche e as gargalhadas de escárnio, a índole própria de um torturador”.

O deboche de Bolsonaro com a tortura de Dilma e outras pessoas na ditadura foi alvo de repúdio de aliados e até adversários políticos do PT, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Fonte: Congresso em Foco

 

 


Compartilhe essa reportagem: