A exemplo de Divinópolis, que terceirizou o atendimento da maior unidade de pronto atendimento da região, a UPA (24), que nos últimos dias está no centro das discussões por mortes em sequência, mau atendimento, superlotação e fraudes administrativas, a cidade de Betim também passa pelo mesmo problema. Sucateamento e fechamento de unidades, falta de remédios e insumos, baixos salários, perseguição aos trabalhadores, demora, burocracia e erros nos atendimentos, estariam gerando sofrimento aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
Os relatos foram colhidos na audiência pública que a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) realizou na segunda-feira (29/4/24), na Câmara Municipal daquela cidade.
Na origem de tudo, conforme denunciado no debate, estariam a má gestão, o sucateamento e a opção prioritária pela terceirização dos mais variados serviços pela Prefeitura de Betim. E a consequência mais grave disso seria a morte de pacientes. Esse pode ter sido o caso da menina Eloá Vieira Alves, de apenas um ano de vida, em 13 de agosto do ano passado, conforme denunciado por seus familiares, entre eles o avô Renato Santos Pereira.
Segundo ele, a menina foi atendida na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) Norte, onde a médica teria diagnosticado uma virose e se recusado a fazer exames. A unidade é administrada pela organização social de saúde (OSS) Instituto de Saúde Nossa Senhora da Vitória (INSV), com origem no município de Santo Amaro, no interior da Bahia.
“Minha neta não morreu, ela foi levada a óbito. Levamos ela para ser atendida falando e mamando, mas a médica que a atendeu nem quis encostar a mão nela. Falou que não precisava fazer qualquer exame, porque era apenas uma virose, mas ela já estava com pneumonia. Receitou apenas um antialérgico e soro. Será que ela mesma, uma criança, teria que falar o que estava sentindo?”
Essa primeira consulta aconteceu numa sexta-feira e no dia seguinte, como a menina ainda estava bastante debilitada, foi levada à UPA Teresópolis, que não é terceirizada, mas estaria completamente sucateada, conforme relatos feitos na audiência. “Lá, o médico reafirmou que ela não tinha nada, apenas uma alergia a poeira. Ele garantiu que o pulmão dela estava limpo”, lamenta Renato Pereira.
No final da tarde de sábado, já desfalecida, a menina teria sido levada para o Pronto-Socorro do Hospital Regional Público de Betim (HRPB), onde, segundo o avô, não foi aceita porque não havia sido encaminhada pela mesma UPA Norte, conforme fluxo do SUS.
“Veja o tamanho dos problemas do atendimento de saúde na nossa cidade. Por causa de um papel tivemos que voltar na UPA Norte, onde ela já tinha estado, e lá já foi internada às pressas. Cada minuto de descaso, de negligência, custou a vida dela”, contou, emocionado o avô.
Na manhã de domingo, a menina foi transferida em estado grave para o Hospital Regional e faleceu horas depois, após várias paradas cardíacas. “Estamos pedindo justiça. Mataram minha neta. A saúde de Betim não era assim, agora está um caos. A família dessa gente não precisa do SUS, mas a maioria das pessoas sim”, acusou.
A família denunciou o caso à Justiça e reclama da falta de apoio do Poder Executivo municipal. A secretária municipal de Saúde, Jaqueline Flaviana de Santana, foi convidada para participar da audiência, mas não compareceu nem enviou representante. Ela assumiu o cargo há apenas dois meses e seria a sétima a ocupar o posto na atual gestão municipal, fato apontado na audiência também como um dos reflexos da crise do SUS em Betim.
A ausência da gestora foi criticada pela deputada Bella Gonçalves (Psol), vice-presidenta da Comissão de Direitos Humanos e uma das autoras do requerimento de audiência, juntamente com a presidenta da comissão, Andréia de Jesus (PT). O debate foi sugerido pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Betim, representado na reunião por seu presidente, Camilo de Leles Mendes Campos.
“O poder público não pode lavar as mãos. O modelo de transformar a iniciativa privada em figura central da gestão de saúde não dá certo, e Betim é um exemplo disso. A privatização do SUS por meios dessas organizações faz muito mal à saúde. Betim é um município que arrecada muito e tem uma aplicação obrigatória desses recursos nessa área, mas parece que esse dinheiro está sendo drenado para outro lugar.”
Bella Gonçalves cobrou um acompanhamento mais rigoroso do problema pela Câmara Municipal de Betim e pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). “A menina Eloá perdeu a vida sem assistência e a ausência da secretária diz muito sobre a disposição de diálogo da Prefeitura de Betim sobre a defesa da saúde”, destacou. Para a deputada, a família da Eloá está de parabéns por transformar luto em luta.
“A Constituição Federal diz claramente que a saúde pública não pode ser terceirizada. Os recursos públicos não podem ser desviados para garantir o lucro de empresas”, criticou Bella Gonçalves.
O presidente da Comissão de Saúde da Câmara Municipal de Betim, vereador Wellington Ferreira de Souza, o “Professor Wellington” afirmou que “o sucateamento da saúde não começou neste governo, vem de muitos anos, mas a terceirização, com certeza, acentuou”.
SUCATEAMENTO
O sucateamento também foi denunciado pela conselheira municipal de Saúde de Betim Alessandra Ribeiro de Meireles, que lamentou o fechamento da UPA Sete de Setembro, na região central da cidade, substituída pela UPA Norte, que fica no Bairro Bom Retiro, bem mais distante.
Isso teria limitado o acesso de moradores de regiões como Citrolândia e Vianópolis, que agora teriam que chegar ao Centro de Betim e de lá seguir em outro ônibus para a unidade, conforme foi lembrado pela diretora do Sindicato dos Servidores Municipais de Betim (Sindserb), Bianca Rodrigues dos Santos Rocha.
“As duas UPAs privatizadas só precisavam de uma boa reforma, mas o governo atual optou por uma terceirização em massa. Realocaram servidores e obrigaram os usuários a se deslocar mais também. Enquanto isso, as UPAs Teresópolis e Guanabara, que sobraram no SUS, estão caindo aos pedaços”, lamenta Bianca Rocha.
A sindicalista ainda citou episódios de assédio moral e sexual a servidores, alimentação precária, baixos salários e trabalhadores adoecidos.
“A organização social é apenas fachada de uma empresa que só pensa no lucro. E como essa empresa faz para aumentar a lucratividade? Simples: reduzindo a remuneração dos profissionais e diminuindo a oferta e a qualidade dos serviços. A crise da saúde de Betim não é uma crise, é um projeto.”
O presidente do Sindserb, Geraldo Teixeira de Abreu, disse que a terceirização é uma estratégia deliberada de desviar recursos destinados à saúde. Ele lembrou que Betim adotou, historicamente, dois modelos de terceirização, primeiro por meio de consórcios de saúde, que resultaram até em uma CPI na Câmara, e agora por meio das OSS, que, segundo ele, parecem ter efeito nocivo similar.
Os diretores do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed), Samuel Pires de Moraes Teixeira, e do Sindicato dos Farmacêuticos do Estado de Minas Gerais (Sinfarmig), Rilke Novato Públio, endossaram as críticas.
“Nem toda terceirização é ruim, legalmente ela serve para complementar a força de trabalho, mas em Betim ela é a regra, não a exceção”, afirmou Samuel Teixeira.
“No caso dos médicos, a relação já é quarteirizada, um absurdo. Até o salário chegar na ponta todo mundo já mordeu um pedacinho. E são sempre as mesmas pessoas, elas fecham uma OSS aqui e depois abrem outra em um lugar diferente”, denunciou, sugerindo a criação de uma lista suja dessas entidades.
PREFEITURA DE BETIM ANUNCIA CONCURSO
Em Betim, a prática da terceirização de unidades e de mão de obra remonta às administrações anteriores, mas teria se agravado na gestão municipal atual. O INSV administra, além da UPA Norte, a UPA Alterosas e o Centro Materno-infantil (CMI). A UPA Norte e o CMI foram unidades construídas e entregues desde o primeiro dia de funcionamento para gestão das OSS, inclusive com cessão de servidores efetivos.
Entre outros serviços terceirizados, todo o setor de oncologia, hemodiálise e oftalmologia seria controlado pelo Hospital Evangélico. A mesma instituição privada também é responsável pelo programa “Escala Certa”, que contrata profissionais para a rede SUS Betim de forma indireta.
Em meio ao enfrentamento da pandemia de Covid-19, o Centro Especializado em Covid-19 (Cecovids) era administrado pela empresa Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social (IBDS), que teria deixado de pagar dois meses de salários aos profissionais de saúde que contratou.
Em seu portal, a prefeitura já anunciou um recuo na terceirização da saúde após assinatura de um aditivo a um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o MPMG. Esse acordo permitiu que fosse realizado um processo seletivo simplificado (PSS) e o credenciamento direto de médicos até a realização, após 13 anos, de um novo concurso público na saúde para provimento de 1,6 mil vagas, ainda em 2024.
O promotor Spencer dos Santos Ferreira Júnior esclareceu que o MPMG não é gestor público e pode atuar apenas como fiscalizador do cumprimento da lei, como o inquérito civil que deu origem ao TAC.
Segundo ele, o PSS foi permitido provisoriamente para evitar a descontinuidade da prestação de serviços pelo SUS até a convocação dos aprovados no concurso. Mas isso somente deve acontecer após o período eleitoral.
Fonte: ALMG